Eles, tempo e saudade




Ponto final. Eu queria terminar minha vida aqui. Apenas escrever “fim”, deitar, escolher uma pose para morrer e pronto, acaba. Queria não precisar fazer escolhas, ou ao menos não me iludir que eu tenho o direito de fazê-las. Meus passos já foram escritos, desenhados, rabiscados... Quisera eu que os fossem apagados...
- Papai, papai!
- Saia.
- Não papai, o vizinho está te chamando, papai, parece ser urgente.
- Eu não o suporto. Saia.
- Mas papai...
- Saia! Quantas vezes...
Não consegui terminar mais um dos meus discursos infundados, mas nem por isso pouco mordazes. Ouvimos alguns gritos que penetraram a sala pela janela entreaberta, sem que antes os vidros tremulassem. O agudo daquele som que em um dia comum eu ignoraria, naquele momento me trouxe arrepios; não pense, ingenuidade, que não gostei da sensação.
- Vamos ver o que está acontecendo, sempre soube que esse lugarzinho abandonado não era bom o suficiente.
Meu filho segurou firmemente a minha mão e seguimos em direção à rua quase abandonada de onde supomos vir os gritos. Meus sentidos talvez houvessem me traído, o que já não me surpreendia. Olhamos freneticamente para ver se algo ocorrera, e por instantes pensei que não era uma boa ideia ter o meu filho ali. O vizinho que havia me chamado não se encontrava mais ali.
A rua estava vazia, a única inferência na perfeita simetria das árvores dispostas em ambos os lados do asfalto mal pavimentado era um relógio quebrado que se encontrava no chão, a uns quatro passos de nós. A maquinaria encontrava-se intacta, o que me incomodou bastante.
Parei e fiquei olhando aquele objeto que nunca me afeiçoara muito. Nunca gostei de relógios, eles me prendem, eles têm o poder que eu gostaria de ter, tornaram-se meus inimigos em dois momentos que viriam a se repetir por toda a minha vida – a sua também, ressalto-: Primeiramente, quando eu queria que o tempo cessasse por um instante, só para o melhor momento da minha vida se prolongar um pouco, bem pouco (claro, ele só significa o que significa por ter sido momentâneo), e agora, que eu ainda quero que o tempo torne-se finito, e a sua magnitude e força que emana sobre todos, pare por aqui... Mas uma fez, fim.
Quimeras. Eu tinha essa força.
Meu filho se aproximou do objeto com passos lentos, observou-o em curto período de tempo e, para romper com a minha análise, se voltou para mim e olhando fixamente para a bandeira que estava hasteada pouco atrás do meu corpo, disse:
- Podemos ir embora, papai?
Não hesitei, também não o respondi. Apenas me virei e comecei a andar com passos apressados. Ele me seguiu e pela primeira vez tive um momento em silêncio com ele ao meu lado.
Da onde viera aquele grito? Aquilo mexera mais com o meu filho do que comigo. Não gostava de tê-lo em casa, ele era uma criança como qualquer outra, logo eu não gostava do seu comportamento. Mas ele estava quieto, contido, adestrado por um grito que na cabeça dele deveria ter vindo de um relógio. Na minha, todos os meus pensamentos tinham uma paisagem sonora, um tiquetaquear agudo, frio, incômodo. A presença do meu filho extinguia-me.
Nunca gostei desse local, nem das pessoas (mas não há lugar que mudará essa minha repulsão humana). Por que eu não me mudo? TIC TAC. Eu poderia ir para a cidade, ela precisa de mim. TIC TAC. Meu filho iria junto, mesmo que lá as pessoas não tenham sensibilidade de entendê-lo.
Por que meu filho não gritara ainda? É comum ele me interromper quando estou refletindo sobre qualquer coisa sem importância. Aliás, já são 20h, onde esse moleque anda? É um pequeno idiota mesmo, desde que nasceu eu soube que não teria muito futuro, logo ao nascer já se tornou um assassino, me trouxe desgosto no primeiro momento de sua vida. Não é inteligente, atlético, engraçado ou atraente... Além de tudo é totalmente pusilânime. Ninguém gosta de senti-lo.
Nesse momento descobri como a dor pesa, carregava nos ombros o desgosto de um pai, a tristeza de um marido, o medo de uma criança, o tempo do mundo. Descobri o olor da derrota de um homem fraco, vencido pela vida e por minuciosos acontecimentos os quais me sufocam. Queria ser homem para chorar, mas não pude. Só homens fortes choram.
De sobressalto olhei pela janela e encontrei uma multidão que eu nem sabia que existia. Na minha cabeça o maldito relógio não me abandonava, mais frequente, mais doloroso. No chão um corpo caído, mas não pude ver o rosto de quem era; o que importa? Eu não o conheceria mesmo. Ao invés do rosto, via apenas o relógio ao lado, em perfeito estado, e ao redor dele duas pequenas mãos que não me eram estranhas.
Grito pelo meu filho, passo mal. Todo o meu sangue está preso na minha garganta, as palavras se foram. Ele não vem mais, não é? Responda-me! Eu o sinto, ele está comigo...
A voz insuportavelmente aguda e infantil que eu pensara nunca mais ouvir rompeu em repetitivos chamados, juntamente com a mão suave que limpava a minha face da lágrima que estava escorrendo. Papai! Vamos andar de bicicleta, a rua está calma, não tem perigo. Por que você está no chão?
Parei. Olhei no relógio e vi uma hora inexistente, olhei para o meu filho um pouco mais maduro e para as minhas mãos machucadas. Aceitei o convite.
A rua realmente estava calma; eu, agitado.
O que aconteceu aquele dia viraram memórias enfumaçadas na cabeça do meu filho. Na minha só mais um ponto final. O grito foi um assassinato de simples resolução, meu vizinho que tinha morrido. Pouco importa. Mas... Por que ele me chamou? Só mais um ponto final.
Acho que posso escolher agora quando eu quero morrer, é só escrever fim. Não existem relógios mais, não existem cores para preencherem a fotografia da minha vida, quem decide em que momento cada coisa acontecerá sou eu. Não sou concreto, posso morrer sem lhe virem lágrimas, você não notará.
Enquanto a você, viva a meu gosto, é a sua única alternativa.
Vou partir para perturbar quem precisa de mais tempo, os de menos também. Pelo simples fato d’eu poder fazê-lo. Agora que sabe quem eu sou, olhe que horas são, olhe rápido, pois já parto.
Ainda há de haver tempo, ainda há de haver saudade.

4 comentários:

ae primeiro comentário do post.

Amei essa frase: [...]deitar, escolher uma pose para morrer e pronto.
Você que esceveu esse texto?
Porque tá perfeito *---*

 

Queria saber que pseudônimo você usou.
Ótimo conto! Alta abstração, eu diria.
E não, o Emma não vai entender u_u
HAHAHA', porque confiar no próprio prof é tudo*


Beijos!

 

O conto da Ale xDDD
Inúmeras interpretações, com certeza. Será que alguém entendeu de primeira?
E o concurso que não teve fim? Poxa! HAHAHA

 

Ótimo conto Alê, forte, sufocante, um soco na boca do estômago.
Marcos Paulo Campos Ferreira da Costa 1ºMT-A

 

Postar um comentário